Não deixa de ser
curiosa a fortuna de alguma da novelística portuguesa contemporânea. De há uns anos a esta
parte, muitas das obras que pautaram, grosso modo, as últimas quatro
décadas da produção ficcional no nosso país foram objeto
de adaptação cinematográfica ou televisiva, com resultados francamente
encorajadores. “Equador”, de Miguel Sousa Tavares, foi um sucesso nos
escaparates e reincidiu no mesmo sucesso aquando do seu transporte para o
pequeno ecrã. “Balada da Praia dos Cães”, de José Cardoso Pires, foi um livro muito bem
acolhido, quer pelo público, quer pela crítica e, daí a passagem ao
celulóide ter sido quase instantânea. “Crónica dos Bons Malandros”, de Mário Zambujal,
foi um fenómeno de bilheteira catapultado pelo sucesso que o livro alcançou nas
livrarias.
Aqui chegados, contudo, uma
questão importa colocar: a circunstância de uma narrativa se transformar em bestseller é,
por si só, garantia de sucesso a nível de bilheteira?
Vem isto a propósito do último objeto fílmico baseado num romance de José Saramago: “O Ano da Morte de Ricardo
Reis” – sabemos que a narrativa, dada à estampa no ano de 1984, não repetiu o
êxito, esse sim, retumbante, que Saramago colhera dois anos antes, com
“Memorial do Convento”. Em abono deste último, poderemos aduzir que alguém
jamais se atreveu a transpor para a grande tela as aventuras de Baltasar e
Blimunda, no entanto há uma constante, ou, melhor dizendo, uma maldição a
pairar nas películas de João Botelho: não importa se o livro teve boa ou má
carreira a nível de vendas – João Botelho é um caso evidente de inexistente
apetência para a sétima arte.
Para este juízo, baseamo-nos, justamente,
em duas películas realizadas por este “cineasta”: “Os Maias”, de 2014,
(inspirado no romance de Eça de Queirós) e “Quem és tu?”, de 2001, (adaptado a
partir de “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett). Em ambos os casos estamos
em presença de um cinema anémico, entediante e soporífero que desmerece dos
textos-fonte onde bebeu a suposta inspiração. Acresce, ademais, a estes
preocupantes exercícios fílmicos, a circunstância de aqueles textos literários
oitocentistas serem referências seminais e objetos literários de créditos
firmados e ampla divulgação: são, “apenas” duas das maiores glórias editoriais do
nosso século XIX.
Se João Botelho havia já prestado um mau
serviço, nas suas desastrosas adaptações de dois dos nossos maiores clássicos,
quem o terá persuadido a reiterar o seu impudente sendeiro? Eis o denso
mistério que não conseguimos deslindar...
O cineasta comete, logo de início um
clamoroso erro de “casting” ao atribuir o papel de protagonista a um Chico Diaz
que, manifestamente não convence: a qualquer altura esperamos que o ator
descambe num sotaque nordestino e desate a cantar forró. Luís Lima Barreto
corporiza um Fernando Pessoa entre o bronco, o indecifrável e o introspetivo
dando-se ares de um esoterismo bacoco e egocêntrico; Lídia (Catarina
Wallenstein) e Marcenda (Victoria Guerra) passam pelo filme como dois manequins
a dificultarem a escolha de Ricardo Reis (o que torna difícil ao espetador
desprevenido sentir alguma espécie de empatia pelo protagonista). O
protagonismo de Reis é, aliás, uma das debilidades maiores da película, uma vez
que as restantes personagens secundárias acabam transformadas em meros
acessórios pelo travejamento narrativo.
A própria intriga(?), centrando-se no ano
de 1936, está muito marcada pelo contexto histórico que é omnipresente, mas do
qual as personagens não se parecem saber libertar. Há, igualmente, uma evidente
dificuldade de transposição do texto literário para o celuloide: as
intertextualidades que proliferam no texto saramaguiano são dificilmente
perceptíveis no filme de João Botelho.
Um outro aspeto “manqué” na anterior
filmografia do realizador e que aqui se afirma, uma vez mais, é o escasso
sentido cinemático das suas produções. Há um pavoroso arrastamento da ação que
quase nos mergulha num colapso nervoso e, para compensar, as personagens
desempenham, por vezes, um “overacting” mais exagerado ainda pelo jogo de luzes
e sombras que faz lembrar o expressionismo alemão. Será propositado?
Os únicos pontos positivos, quanto a nós,
residem em alguns belíssimos detalhes da fotografia a aproveitar as poéticas
deambulações do protagonista por uma Lisboa a preto e branco e a música de
Daniel Bernardes que consegue captar, quanto a nós, a ambiência simultaneamente
melancólica e fechada do Estado Novo. No cômputo geral, Saramago merecia um
cineasta à altura dos seus pergaminhos.
Gabriela Pires, 12.º A